Concessões de Transporte Coletivo e Nova Lei de Licitações – Por Dr. Luiz Antonio Alves de Souza
A minuta do edital de licitação para a concessão de serviço público de transporte coletivo urbano, em um Município do Estado de São Paulo, que veio a público em fevereiro de 2021, taxativamente prevê a submissão do procedimento à Lei Federal nº 8.666, de 1996, apesar de já então ter-se notícia de sua próxima substituição. Pareceu, por isso, extemporânea, essa declaração, o que se confirmou com a sanção e promulgação, pelo Presidente da República, com alguns vetos parciais, da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei Federal nº 14.133, publicada em 1º de abril de 2021, da qual se torna oportuno considerar algumas disposições.
As licitações e contratações da Administração Pública eram regidas pela Lei nº 8.666, de 1993, cuja revogação foi tratada, sem muito apego à clareza, pelo art. 193, da nova lei, em duas regras. Deste artigo, o inciso I revogou, na data da publicação da nova lei (1º/04/2021), os art. 89 a 108, da lei anterior, enquanto que o inciso II dispõe que a revogação da referida Lei nº 8.666/93, bem como da Lei nº 10.520/2002, e dos art. 1º a 47-A, da Lei nº 12.462/2011, ocorrerá depois de decorridos dois anos da publicação da nova lei, data na qual entrou em vigor, por força do seu art. 194 (disposição que atende ao art. 1º, da LINDB).
A interpretação dos incisos I e II, do art. 193, da nova Lei, gera a conclusão de que, na verdade, a revogação, dentro de dois anos, da Lei nº 8.666/1993, será dos seus art. 1º a 88, e 109 e seguintes, ficando, desde a data de publicação da nova lei, revogados os art. 89 a 108, da anterior, que são disposições criminais e processuais criminais. A nova lei tipificou os crimes contra as licitações em disposições introduzidas ao Código Penal, não se tratando de mera repetição das disposições revogadas, da Lei nº 8.666/93, observando-se, inclusive, aumento das penas então previstas. Os penalistas dirão se essa mudança afetará os processos criminais em andamento, nos quais a denúncia foi feita com base na lei anterior. De pronto, parece que o aumento das penas não poderá ser considerado, porque implicaria retroação de lei que não é a mais benéfica.
Em matéria de direito transitório, o art. 190, da nova Lei, estabelece que o contrato assinado antes da sua entrada em vigor continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação então vigente. Além disso, o art. 191 estabeleceu a possibilidade de a Administração optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com a nova lei, ou conforme as leis mencionadas no inciso II, do art. 193, até o termo final nele estabelecido, desde que indique expressamente a opção tomada, no edital, ou aviso.
O parágrafo único, do art. 191, de seu turno, estabelece que, no caso de a Administração optar por licitar pelas leis referidas no inciso II, do art. 193, o contrato resultante vigorará regido pelas regras nelas previstas.
Assim, ao lado de uma saudável medida de direito transitório, inovou-se em matéria de vacatio legis, em prejuízo da segurança jurídica. Por vezes, uma nova lei estabelece um período razoável para sua entrada em vigor, mantida, no mesmo período, a vigência daquela que será revogada. Não, porém, a vigência concomitante de duas leis que incidirão conforme a vontade da Administração, para reger relações jurídicas de mesma natureza.
Duvidosa, a constitucionalidade dessa alternativa de aplicar uma ou outra lei. Em matéria de licitações, a União tem competência constitucional para a edição de normas gerais, embasada no princípio federalista. “O conteúdo do princípio federalista engloba outros, dele derivados, como o princípio da indissociabilidade e o princípio da autonomia das coletividades autônomas, que integram o conceito de Federação, estejam ou não expressos na Constituição. Os arts. 1º e 18 da CF os inscrevem ao estatuir que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, todos autônomos”. 1
Parece ofender referido princípio da indissociabilidade do Estado Federal, que a União edite norma geral que permita aos entes federados, dentre eles também incluídos os Municípios, optar por licitar conforme um dado regime legislativo, entre dois possíveis. Se ao legislador pareceu razoável período de adaptação à nova lei, deveria ter, simplesmente, prorrogado a vigência da anterior, sem dar a opção de aplicar uma ou outra. Ofende o princípio em foco que uma unidade federada aplique lei federal distinta daquela aplicada por outra unidade federada. Além disso, parece ferido também os princípios da razoabilidade e da racionalidade das leis.
Seja como for, cabe indagar: essa possibilidade dual se aplica às concessões de serviço público, notadamente aquelas de transporte coletivo urbano? A resposta é negativa.
Da Lei nº 8.666, de 1993, o art. 1º referia conter “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos”, enquanto que o art. 2º dispunha que, dentre outras espécies, as “concessões e permissões”, quando contratadas com terceiros, seriam necessariamente precedidas de licitação. O art. 122 ressalvava expressamente as licitações para concessões de linhas aéreas, sujeitando-as a regime próprio.
Harmonicamente, o art. 14, da Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995), prescreve que “Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria …”. Interessante frisar o sistema estabelecido como que em dois tempos sucessivos: a concessão deveria ser necessariamente precedida de licitação, sendo esta processada conforme a legislação própria.
Contudo, como já observado, a nova lei entrou em vigor na data da sua publicação, por força do art. 194. Deve-se, portanto, levar em conta os efeitos do seu art. 2º, que enumera, de forma taxativa, as hipóteses de incidência respectiva, deixando de fora a licitação para a concessão e para a permissão de serviços públicos (refere tão somente licitações para concessão de direito real de uso e para concessão de uso de bem público, entre os tipos regulados). Em síntese: entrou em vigor uma nova lei que taxativamente explicitou o âmbito da sua incidência, nele não incluindo – repita-se –; não incluindo a concessão de serviço público. Como se nota, há evidente mudança com relação ao art. 2º, da Lei nº 8.666/93, que previa sua aplicação genericamente às licitações antecedentes das concessões e permissões, sem distinção do respectivo tipo.
Incide também o art. 186, da nova lei, que prescreve expressamente: “Aplicam-se as disposições desta Lei subsidiariamente à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, à Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, e à Lei nº 12.232, de 29 de abril de 2010”.
Como não se pode estabelecer antinomia entre dois dispositivos da mesma lei, no caso entre o art. 2º, e o art. 186, deste vale realçar a expressão “aplicação subsidiária”, seu núcleo definidor, ou “DNA legal”, como já se
disse, a respeito de dado dispositivo de outra lei. Com isso se quer dizer que as licitações para as concessões de serviço público – superando algum entendimento até aqui existente, adiante explicitado –; serão regidas pelo art. 14 e seguintes, da Lei Federal de Concessões (8.987/1995), combinados com os art. 8º a 10, da Lei Federal nº 12.587, de 03 de janeiro de 2012, Lei de Mobilidade Urbana, bem como aplicando-se, subsidiariamente – repita-se –; subsidiariamente, as disposições da nova lei de licitações.
A expressão “aplicação subsidiária” é largamente utilizada em dispositivos legais, o que não significa que seu entendimento seja pacífico. Mas não se pode contestar que a aplicação subsidiária de uma disposição legal está sempre relacionada à outra (disposição legal). Procura-se evitar que dada disposição legal não regule, de forma suficiente, relação jurídica sobre a qual incide, aplicando-se subsidiariamente (complementarmente) outra disposição legal, em razão do princípio da completude do sistema, que evita a existência de lacunas. Consequentemente, afasta-se a norma subsidiária quando a norma subsidiada disponha suficientemente sobre sua hipótese de incidência, ou se houver incompatibilidade entre elas (p. ex., pela clareza: CCB, art. 996. Aplica-se à sociedade em conta de participação, subsidiariamente e no que com ela for compatível, o disposto para a sociedade simples …).
Portanto, a licitação para a concessão de serviço público, antecedida, ou não, de obra pública, passa, indiscutivelmente, a ser regida pelos artigos pertinentes da referida Lei de Concessões, combinados com aqueles outros indicados, da Lei de Mobilidade Urbana, com aplicação subsidiária da nova lei. Assim, v.g., o julgamento da licitação para a concessão de serviço público será conduzido pelos critérios estabelecidos no art. 15, da Lei nº 8.987, de 1995, e não pelos critérios estabelecidos no art. 33, do novo diploma.
Parece que o legislador optou por superar algumas dificuldades decorrentes do entendimento que fazia prevalecer a Lei nº 8.666/93 sobre a Lei nº 8.987/1995 (inadmitindo, por exemplo, para as concessões de serviço de transporte coletivo urbano, o critério da melhor proposta técnica, ainda que expressamente previsto no inciso IV, do art. 15, da Lei de Concessões). Confundia-se o que acima foi referido como sistema temporal, no qual a licitação, regida por normas próprias, antecedia à concessão, com prevalência das normas sobre licitações sobre as normas específicas de licitações contidas na lei de concessões. Trocava-se precedência por prevalência.
Se assim ocorria, a melhor inteligência já deveria ser a de aplicar a Lei de Licitações devidamente modificada pelas disposições específicas da Lei de Concessões, que era posterior àquela, o que implicava, no mesmo exemplo, adotar exatamente os critérios de julgamento estabelecidos na última, e não da Lei de Licitações. Portanto, já então não se justificava inadmitir dado critério de julgamento porque embasado na lei das concessões, e não na lei das licitações. Na nova lei está invertida expressamente a ordem de aplicação dos dispositivos legais, o que torna incontestável a prevalência de uma sobre a outra (neste caso se pode falar de prevalência).
Com a publicação da nova lei, a situação passa a ser aquela já descrita, de aplicação subsidiária da legislação das licitações, modificando-se ligeiramente a previsão do art. 14, da Lei de Concessões, antes transcrito, para que não configure antinomia no confronto com a nova lei, sendo, ambas, leis ordinárias federais, ou seja, estando situadas no mesmo degrau hierárquico das leis infraconstitucionais, e sendo, a nova lei de licitações, posterior àquela de concessões.
Pode-se, inclusive, para ilustrar a hipótese, invocar a conhecida figura da integração dos negócios jurídicos, lato senso, ao ambiente normativo. O edital – convite à oferta –; de licitação de concessão de serviço público será integrado por cláusulas determinadas pela Lei Federal de Concessões e pela Lei de Mobilidade Urbana, complementadas, em não havendo incompatibilidade, com aquelas (cláusulas) previstas na nova Lei de Licitações.
Essa compreensão evita também antinomia entre os artigos 191, c/c o 193, II, 2º e 186, da nova lei. Para que não reste dúvida sobre essa conclusão, tenha-se em conta que a nova lei entrou em vigor na data de sua publicação, o que inclui, obviamente, o início da vigência, em 1º/04/2021, do seu art. 186, tornando as normas de licitação subsidiárias às normas sobre as específicas licitações de serviço público previstas na Lei nº 8.987, de 1995. Já por esse dispositivo seria incompatível admitir-se, depois dessa data, a possibilidade de licitar concessão de serviço público pela Lei nº 8.666, de 1993.
Sem embargo da eventual inconstitucionalidade da opção prevista no art. 191, c/c o art. 193, II, da nova lei, pelas razões antes mencionadas, tal opção somente se põe entre as mesmas licitações regidas pela antiga e pela nova lei, cujo art. 2º, como já referido, não incluiu as licitações para a concessão de serviço público. Se a nova lei não incluiu, dentre suas hipóteses de incidência, tais licitações, às quais, coerentemente, são aplicadas subsidiariamente, a estranha opção também não as incluiu. Lembre-se: tal opção somente existe por força da nova lei.
Vale uma última consideração, retomando a possível inconstitucionalidade da opção do art. 191, c/c com o art. 193, II, da nova lei. A entrada em vigor desta (a nova lei), na data de sua publicação, combinada com os outros seus dispositivos acima referidos, gera a convicção de que a inconstitucionalidade seria da vacatio legis de dois anos da anterior Lei nº 8.666/93, que deve ser tida como revogada, desde a data de publicação da nova lei, inexistindo opção pela aplicação de uma ou outra, no mesmo período, também em benefício da segurança jurídica, outro princípio constitucional.
Artigo escrito por Luiz Antonio Alves de Souza em abril de 2021.
[1] SILVA, José Afonso da, “Teoria do Conhecimento Constitucional”, Malheiros, SP, 2014, pág. 665, itálico do original.
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