Bruna A. Souza - Análise Jurídica - Contratos

Momento da discricionariedade do gestor público no processo de contratação – Dra. Bruna Alves de Souza

Desde o fim do último ano, participo de um curso sobre Contratos Administrativos e Licitações oferecido pela Fundação Arcadas, da Faculdade de Direito da USP, em parceria com o Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).

Ao longo deste excelente curso, uma das provocações mais marcantes tem sido o questionamento das prerrogativas que concedem poder de alteração unilateral nas relações contratuais pela Administração Pública, previstas no art. 58, da Lei das Licitações, Lei Federal nº 8.666 de 21 de junho de 1993, conteúdo que a princípio também estará presente na lei que a substituirá (Projeto de Lei nº 1292/95). O assunto vale reflexão.

O debate teve início na primeira aula, ministrada pelo Prof. Fernando Dias Menezes de Almeida, e foi aprimorado ao longo dos meses, trazendo-me novo viés, que agora parece um tanto quanto óbvio.

A justificativa dessas chamadas prerrogativas, ao menos em tese, é a prevalência do interesse público, especialmente nos casos em que há modificação contratual que implique em ônus para o contratado, ainda que compensado na equação econômico-financeira do contrato. Então importa, primeiramente, perguntar: faz sentido que o interesse público seja o da modificação dos contratos a posteriori, conforme vontade exclusiva da Administração, em qualquer contrato com ela celebrado?

O exemplo mais marcante dado em aula foi a incidência de tais prerrogativas até mesmo na compra de copos de plásticos. Sem a pretensão de reduzir a importância dessa aquisição ou tratar questões ambientais, fato é que se torna difícil defender a necessidade de garantir à Administração Pública a possibilidade de alteração unilateral do contrato e demais prerrogativas, com base em interesse público, no exemplo dado, bem como em tantos outros.

Permita-se a simplificação para ilustrar. A defesa do interesse público não deveria incluir a defesa dos direitos, no exemplo acima, do fornecedor dos copos? Qual ônus é maior: eventual estoque de copos por uma falha de cálculo dos requisitantes ou alargar a produção e tê-la cancelada por alterações imprevisíveis feitas pelo adquirente? Parece-me óbvia a injustiça do narrado, além de que fácil concluir que esse tipo de unilateralidade ofende os direitos do privado.

Ora, o mesmo interesse público que justifica as prerrogativas da Administração também deve limitá-las. Em assim sendo, deveria ser vedada sua invocação em dados contratos.

Aliás, diga-se ainda que submeter a contraparte à situação de disparidade contratual implica que esta deva incluir no preço ofertado o cálculo do risco, entre outros, onerando não só o particular, mas também a Administração.

Outro efeito é a menor preocupação com o objeto do contrato, vez que à Administração está resguardado o direito de alteração, quiçá sem ônus.

Por fim, como não poderia deixar de ser, também gera consequências na cultura dos órgãos de controle, até mesmo na avaliação dos direitos – nem sempre considerados – da contraparte. Esse é o preço de contratar com a Administração Pública!

O que leva ao cerne da questão. É preciso se perguntar por que a Lei nº 8.666 vê como eficiente impedir que o gestor público negocie o contrato no início da contratação, preferindo transmutar tal discricionariedade em forma de alteração unilateral do contrato no momento de sua execução. As escolhas da lei são evidentemente fruto da ânsia do combate à corrupção, mas… há alguma prova de que essa específica opção torne eficaz o combate à corrupção? Não. Certamente também não favorece a qualidade da contratação.

As escolhas legislativas buscam engessar o gestor público em relação às leis e engessar o particular em relação à Administração Pública. É um jogo de gato e rato que grande parte das vezes sequer traz efetivos benefícios, muito menos ao interesse público.

De fato, engessar o gestor público não só não tem impedido a corrupção, mas certamente tem feito grandes estragos à qualidade das contratações e, muitas vezes, aos direitos dos privados que prestam serviços à Administração.

É mais do que o suficiente para justificar a evolução do contrato administrativo no sentido de seguir o caminho oposto, optando por alargar a atuação do gestor público no momento da contratação, mas restringir o uso das prerrogativas da Administração, priorizando-se a consensualidade, conforme defendido por muitos juristas da atualidade. Imprescindível, portanto, revisar a lógica do processo de contratação.

Assim, é lamentável, que, ao menos até o momento, não seja esta a opção do projeto de lei em tramitação para substituir a afamada Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública, Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. Sem dúvida alguma, seria a melhor forma de atender o interesse público, com eficiência de custos, qualidade na contratação e consensualidade entre as partes. Diga-se de passagem, tem dado certo aos privados e na maior parte do mundo.

Artigo escrito pela sócia Dra. Bruna Alves de Souza em fevereiro de 2020.

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