Princípio in dubio pro societate na ação civil de improbidade administrativa – Por Bruna Alves de Souza
A Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, dispôs sobre a improbidade administrativa (LIA), incluindo o procedimento a ser seguido, com diferenças em relação ao rito comum. Dentre elas, que os réus sejam notificados para se manifestar previamente. Outra alteração é que o julgador, após analisar a inicial e a defesa prévia, bem como a prova até então produzida, profere decisão de recebimento, ou não, da inicial, podendo fazê-lo em face de todos ou de alguns réus. Apenas então a citação é promovida, passando-se ao rito comum.
Entendeu-se que essa análise prévia se justificava, dado o enorme ônus que essa ação traz aos réus, servidores públicos, empresas que fornecem para a Administração Pública e seus administradores. De fato, a mera distribuição dessa ação em face dos servidores públicos, e de quem contrata com a Administração pode trazer considerável prejuízo, notadamente se houver decisão liminar de bloqueio de bens e recursos dos envolvidos.
Ainda assim, a análise prévia, incluída na lei pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4 de setembro 2001, foi alvo de resistência, desagradando notadamente aqueles que pressupõe que todos os servidores são corruptos. Felizmente, foi declarada constitucional. No entanto, apesar de os opositores da medida restarem formalmente vencidos, parecem ter sido vitoriosos na prática. Explica-se.
Ministério Público e Administração Pública têm poderes, ainda que em diferentes níveis, para instaurar investigação prévia de apuração dos fatos diante da suspeita do ato improbo. Comum, no entanto, que não o façam[1]. Criam a narrativa, muitas vezes apoiada em denúncia da oposição política, com ela instruindo o processo administrativo e distribuem a ação, requerendo produção de provas para esclarecimento dos fatos. Neste sentido, possível incluir no polo passivo toda e qualquer pessoa, ou que, de alguma forma, por qualquer motivo, tenha se manifestado no processo administrativo que gerou a compra inquinada de ilegal.
Deveria bastar a lógica para concluir que, de tal material de suporte, é impossível deduzir prova de dolo ou de proveito econômico por quem quer que seja, muito menos imputação de responsabilidades individuais de suposta ilicitude. Sequer dano ao erário! No entanto, contrário senso, tal conjunto probatório tem sido admitido como “indício suficiente de improbidade” em relação a qualquer pessoa incluída na ação como réu. A manifestação dos réus tem sido, na maior parte das vezes, ignorada a pretexto do conveniente princípio “in dubio pro societate”, que possibilita o recebimento da ação, exceto quando há prova inequívoca da inocência do acusado.
Ora! O recebimento da ação, sob tal pretexto, esvazia completamente o sentido da defesa prévia do § 7º, art. 17, da LIA! De fato, o que se está a exigir é produção de prova negativa, inadmissível em direito sob a pena de afronta à segurança jurídica.
Há mais. Não pode haver dúvida do prejuízo de se considerar qualquer pessoa corrupta, meramente por exercer cargo ou função, na Administração Pública, relacionada à contratação de particulares, tanto mais por ser crescente a necessidade de parceria público-privada para realização dos objetivos constitucionais.
A premissa de que todos os servidores atuam ilegalmente banaliza o conceito de improbidade. Primeiramente, porque fomenta a cultura de que é impossível ser honesto ao contratar pela ou com a Administração Pública. Em segundo lugar, porque se mesmo o honesto enfrenta o ônus da acusação, há um incentivo à desonestidade, e não um freio. Há quem fale ainda em esvaziamento dos cargos públicos.
É urgente que sejam colocados limites ao princípio do “in dubio pro societate”, sob a pena de que o art. 17, §7º, da LIA, como ocorre hoje, continue a ser equiparado ao art. 330, do CPC-15. Inaceitável. São distintas, a ação de rito comum, prevista no CPC, e a ação civil de improbidade administrativa.
Urge que o Judiciário passe a verificar efetivos indícios de improbidade, caso a caso, deixando de aceitar a palavra do acusador como indício suficiente de improbidade. Assim, a mudança deve começar, necessariamente, pelo cumprimento constitucional da motivação da decisão. Para tanto, recuperar a noção de que ao recebimento da ação é necessário que a acusação tenha cumprido o ônus da prova e o julgador efetivamente analise as defesas prévias dos réus. Apenas a partir deste aprofundamento é possível determinar quais dúvidas e sobre quem deverão ser esclarecidas no processo judicial a ponto de justificar o recebimento da ação.
Com isso, como se vê, propõe-se novo caminho para a aplicação do princípio do “in dubio pro societate”. Usado hoje como forma de reduzir a defesa prévia a zero, como em qualquer abuso, há inadmissível desrespeito ao devido processo legal.
Artigo escrito por Bruna Alves de Souza em fevereiro de 2021.
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[1] Esclareça-se que a maior parte das ações de improbidade administrativa, em cuja generalização este artigo se apoia, tem como palco pequenos municípios, ao invés dos alvos federais ou estatais.